Dentro de cada pessoa cínica, há um idealista desapontado.
George Carlin
Se publicar é a prática de colocar tinta no papel e jogar na mão do povo, então criar uma editora é barbada (principalmente se for uma editora anarquista). Embora existam indiscutivelmente mais livros anarquistas sendo publicados do que em qualquer outro momento da história, a quantidade de leitores está diminuindo. Publicações anarquistas, sejam panfletos, jornais e revistas, estão reduzindo no universo inteiro. Cronogramas de publicação sem frequências definidas e diminuição das tiragens, indicam que o tempo do papel pode estar chegando ao fim para os periódicos anarquistas.
O indicador para essa contagem é que tem havido uma correspondente, se não maior, ascensão de publicações anarquistas na internet. Mas será que esse é realmente o caso? Isso vai depender do que você entende por publicação. Por exemplo, no site infoshop.org, podemos encontrar a maior e mais antiga publicação anarquista na web, ao longo de um ano, seria difícil encontrar um grande volume de conteúdo original na parte de notícias (já que é a mais ativa) para preencher as páginas de uma revista. Isto não é uma crítica, mas uma declaração de como uma publicação na internet é qualitativamente diferente de um jornal ou revista, onde republicações são a exceção e não a regra.
Por isso, talvez seja necessário uma definição mais ampla de publicação anarquista. Livrar-se de publicações de tinta e papel, pode ser visto como mais saudável e ecológico do que nunca. Sabemos que esses são dias felizes de discussões sobre os acontecimentos do outro lado do mundo, artigos escritos na semana passada, e detalhes picantes que antigamente teriam levado anos para descobrir sobre os heróis e vilões da anarcolândia (risos). Mas o que perdemos neste mundo novo da informação constante que se limita as telas, as conexões banda larga; especialistas das artes digitais, HTML, CMS, e manipulação de imagens?
O ritmo, o tato, a sedução, o contexto, a simplicidade, clareza, escrita bonita, profundidade, debate informado, e as relações pessoais aos autores é o que perdemos. É bem provável que essas coisas não vão voltar, nem nas publicações anarquistas ou em qualquer outra. Além disso, há uma massa crítica de leitores que deram adeus aos preços de venda; artigos longos demais; autores especializados; nome de editoras; cronogramas lentos de novas publicações e a quantidade de tempo levam para que periódicos possam ser impressos. As pessoas já não esperam impressões, em geral, as editoras que imprimem materiais estão desaparecendo uma a uma. Qualquer editor que deseja ser relevante deve manter uma presença na internet, mas o oposto disso também é verdade. O movimento em direção ao digital (evidenciado pelo número crescente de versões “apenas pdf” de publicações anarquistas) e incapacidade de um número maior de projetos capazes de ganhar voz própria é uma demonstração dos tempos sombrios que temos pela frente. Claro, haverá mais palavras, mais coisas jogadas contra as paredes digitais na esperança de ficar, mas isso não vai ser notado. Na melhor das hipóteses um novo tipo de elite virtual (que já existe e se diz dona de muitos espaços anti-autoritários) vão se virar na direção de um texto e pipocar novos links. E assim vão continuar na próxima semana. Até pintar a próxima coisa, a próxima falsa controvérsia, o próximo prazer, a próxima distração.
Isso é bem diferente do que acontece num zine, do mais humilde ao mais fantástico, até mesmo uma revista de crítica anarquista no fundo da mochila de um viajante. A tinta no papel contém mais possibilidades de serem redescobertos muitos anos depois, de encontrar um novo público. Editoras anarquistas de nossos tempos devem emergir como uma solução para um problema novo, que neste momento parece ser mais grave do que a própria extinção de editoras no século passado. Se a ideia de vivermos livres de coerção significou em algum momento vivermos livre do trampo de imprimir e distribuir, isto não tem se mostrado uma boa ideia. Existe um mercadão de ideias, nossas premissas de liberdade e anarquia já não parecem ser muito convidativas. O caminho é solitário e perigoso. Pode parecer pouco evidente, mas o processo de desejar a liberdade anarquista, de articular um mundo diferente enquanto estiver sob coação, é parte do processo para se tornar uma pessoa informada e educada ao longo da vida anarquista, tal como ler as palavras dos velhos anarquistas, ou o famoso FAQ.
O processo de colocar tinta no papel e entregá-los para pessoas que estão interessadas contém um espectro completo de experiências sobre como realmente podemos fazer alguma coisa. Como transformar boas ideias (e mesmo as meia-boca) em sucessos ou fracassos. No papel essas ideias tem um valor próprio, mais do que elogios, críticas e enganos, o resultado é jogar mais ideias para o mundo. O processo de transferir palavras impressas de lá pra cá, de você pra mim, é também a conexão primária que faz existir uma editora para dezenas, centenas ou milhares de pessoas que serão escribas do futuro, feitiçeirxs da anarquia, companheirxs que podem fazer as coisas acontecerem e as melhores amizades que você nunca vai ter.
“Isto não é uma crítica, mas uma declaração de como uma publicação na internet é qualitativamente diferente de um jornal ou revista, onde republicações são a exceção e não a regra.”
Sobre re-publicações serem regra na internet, e não exceção, eu vivi um processo que talvez tenha sido o mesmo para as outras pessoas?
Eu adotei pra minha vida uma crítica que recebi nos primeiros anos do meu blog, na qual me disse uma pessoa que: eu não tenho nada importante a dizer que alguma outra pessoa já não tenha dito antes. Isto é, que seria muita prepotência minha acreditar que, num mundo de 9 bilhões de humanos vivos, mais incontáveis outros mortos, e com muito do que se possa imaginar já publicado online a alguns cliques de distância, só eu tenha pensado uma dada coisa, como se eu fosse o segundo Einstein.
Eu não sentia e não sinto apreço por aquela pessoa pois tem por profissão informar os outros, mas ao mesmo tempo tinha preguiça de informar a si mesmo (qualquer que fosse a fonte, qualquer que fosse o meio). Entretanto, não só o enunciado me foi coerente como se demonstrou correto no teste empírico: de quando comecei a blogar (os primeiros anos), tudo que escrevi de autoral foi pro lixo depois de pouco tempo, pois não eram coisas importantes/factualmente corretas, ou eram coisas que estavam duplicadas com o que podia ser lido noutra parte. Segui o caminho então de procurar textos alheios e traduzi-los, e depois abandonei a prática também, pois vi que os outros blogueiros eram tão mal-direcionados quanto eu, e que praticamente tudo que traduzi era desimportante, factualmente incorreto, ou duplicado: tal como o que eu escrevi, apenas em outro idioma.
Assim, eu simplesmente não consigo “pôr tinta no papel” mais, nem tinta eletrônica na internet nem tinta de tinta mesmo num papel de árvore morta — perante a vastidão de tudo que existe escrito, me apequeno e me indago: o que ainda resta escrever, que eu consiga escrever? Parece que a escrita autoral, no fim das contas, é um talento que poucos possuem mesmo, como a maioria das pessoas acredita que seja: não é uma conspiração da imprensa, não é uma opressão intelectual das escolas, não é uma marginalização do capitalismo, não é um embotamento do urbano — é simplesmente como é. O texto desse post aí aponta que as pessoas deixaram de escrever pois passaram a usar o tempo para se ocupar de frivolidades online, mas, será que as demais publicações online não poderiam ter chegado a conclusão semelhante à minha?
Desculpe-me se eu já tiver dito isso em outro lugar antes, mas é que isso vive rondando a minha cabeça há anos, até mesmo desde antes de conhecer a Editora, e eu tenho sempre a impressão de que nunca lhes respondi (nem a mim mesmo) em nenhum lugar. Não que lhes importe, claro.