“Anarquismo é criar bibliotecas”

Para alguns, ser anarquista também é lutar contra o estigma da violência. No caso de Toby, responsável pela biblioteca anarquista mais antiga do México, a luta imediata é humanizar nossas formas de convivência. “O que você ganha quebrando uma vitrina? Amanhã vão colocar outra”, questiona.


CIDADE DO MÉXICO – Toby detém uma das maiores coleções bibliográficas sobre anarquismo no continente. O homem, na casa dos cinquenta, é anarquista e pacifista até a medula, o que para ele é o mesmo. Seus óculos têm a rigidez de um arame e ele parece dispensar quase tudo, até mesmo o sobrenome: insiste que eu o cite como “Toby da Biblioteca Reconstruir”.

A Biblioteca Social Reconstruir foi fundada pelo anarquista Ricardo Mestre, refugiado da Guerra Civil Espanhola que em 1976, nos anos da mais dura perseguição política ao Partido Revolucionário Institucional (PRI), abriu uma biblioteca pública com seus livros. Mestre faleceu e agora Toby cuida da livraria localizada a algumas ruas da estação do metrô La Raza, ao norte da Cidade do México.

Na entrada, que é aberto ao público, há uma placa proclamando “Liberdade e não-violência”. Quando pergunto a Toby Sem Sobrenome por que paz? ele conta a seguinte história:

Nos anos em que Mestre esteve na Espanha, os donos da fábrica onde ele trabalhava contratavam fura-greves para arruinar uma greve de trabalhadores. Os confrontos viraram até tiroteios. Em uma ocasião, Mestre atirou contra um fura-greve que ficou apenas ferido.

Anos depois, numa turnê de propaganda, ele foi questionado por alguns participantes sobre seu local de origem. O Mestre respondeu que era de Villanueva y Geltú, ao que um dos presentes respondeu que aquele lugar trazia lembranças ruins, pois em uma época em que sua família estava literalmente morrendo de fome lhe ofereceram um péssimo emprego e a necessidade o fez aceitar, mas ele descobriu que teve que enfrentar alguns grevistas e nos tumultos foi espancado, perseguido e que tomou um tiro.

O Mestre percebeu que tinha sido o homem que atirou nele e em suas memórias reflete: “Como é possível que nós anarquistas tenhamos matado um homem por causa de coisas materiais? Fomos capazes de matar um homem que entrou no conflito, não por ser um traidor, mas por causa da fome, por causa da miséria?”.

O Mestre entendia o anarquismo de uma perspectiva muito mais ampla: se os fins eram bons, os meios tinham que ser bons, explica Toby.

Toby, na Biblioteca Social Reconstruir.
Toby, na Biblioteca Social Reconstruir. Foto: José Ignacio de Alba.

— Como você explicaria o anarquismo para alguém que não conhece o termo?

As pessoas não entendem bem o conceito e a imprensa ou o Estado se encarregam de dizer que anarquismo é caos, desordem, quando significa o contrário. O anarquismo cria uma sociedade organizada sem governo, ou seja, há organização. Basicamente, quando surge um problema, discutimos juntos, o que é acompanhado por uma ação direta; existe um problema, nós resolvemos nós mesmos, sem intermediários.

— Tem gente que associa a ação direta com a violência, e não é bem assim né?

Não, não, não. Ação direta é quando você tem um problema de criminalidade na vizinhança, ou com o lixo, qualquer coisa. Você cria um acordo com os vizinhos e eles arrumam na hora, ou seja, ação direta. É como se você quisesse sair com uma garota, você não vai dizer ao seu amigo “veja se ela quer sair comigo.” Não! Você vai pessoalmente fazer as coisas, isso é ação direta. Sempre foi assim, no anarcossindicalismo é o trabalhador que vai direto no patrão: essas são as nossas condições! Sem ter um advogado que vai falar por eles. A ação direta é para aqueles envolvidos em resolver seus próprios problemas.

Toby explica que o anarquismo chegou ao México em 1861 com o grego Plotino Rhodakanaty, que fundou o grupo Estudantes Socialistas, onde floresceram diferentes movimentos. Um dos participantes mais proeminentes era Julio Chávez López, que organizou uma revolta camponesa em uma área entre Chalco e Puebla.1 Os rebeldes queimaram terras e títulos de propriedade até que o movimento foi suprimido militarmente e Chávez López foi fuzilado.

— Este movimento influenciou a Revolução?

— Não, porque o problema do México e de toda a humanidade é que a memória se perdeu, não há continuidade; Além disso, o Porfirismo2 foi encarregado de apagar a história dessas rebeliões.

O anarquismo no México voltou a florescer no século 20, com os irmãos Flores Magón, Librado Rivera, Práxedis G. Guerrero, entre outros. Aqueles eram os tempos da Revolução e do jornal anarquista Regeneração que circulou em várias cidades. O Partido Liberal Mexicano lutou em vários lugares, a popularidade do anarquismo causou seu isolamento com outros revolucionários, como o Francismo I. Madero.

Toby explica que a Constituição em vigor no México, desde 1917, tem vários elementos anarquistas. Por exemplo, as jornadas de trabalho de 8 horas, o dia de descanso e a autonomia municipal são elementos magonistas.

— Qual é a situação do anarquismo no México?

— Atualmente as cidades são muito grandes, são poucos os que lutam pelo anarquismo. Isso indica que vai dar muito trabalho. Mais do que perfeição, buscamos mais elementos de liberdade. Se tivéssemos força para derrubar o Estado e poder nos apropriar dos meios de produção, o faríamos; Mas enquanto não podemos, estamos formando espaços: criamos bibliotecas, promovemos a pedagogia libertária, apoiamos grupos que fazem rádios livres, localizamos gente que têm espaços ociosos na comunidade. Estamos criando espaços e procurando uma maneira de levar o anarquismo a coisas muito básicas. Por exemplo: anarquismo é criar bibliotecas.

— Que avaliação você faz do que aconteceu no dia 2 de Outubro com a violência durante o protesto?3

— Quando alguém quebra uma vidraça, pergunto: “O que você ganha quebrando uma vitrina? Amanhã vão colocar outra”, questiona. Essas cenas ficam boas apenas nas fotos, mas isso não faz a menor diferença. A violência se torna uma espécie de carnaval, onde as pessoas gritam “Morte ao Estado!” e depois voltam à normalidade. Temos que repensar a eficácia do que fazemos agora. É na mente e no coração que devemos fazer a mudança, antes de usar armas.

Toby garante que as pessoas mais violentas durante as marchas são as primeiras a sair do anarquismo, “porque você não vai vencer um Estado de violência com sua suposta violência”. Além disso, ele garante que as pessoas que agem com violência durante as marchas tendem a ter “ideias burguesas” sobre o anarquismo, e agem como o Estado quer concebê-las.

— Como você traz o anarquismo para a vida diária?

— Tornando as coisas que você faz todos os dias mais humanas.

Toby recomenda a leitura de Ideologia anarquista de Ángel J. Capelleti para quem deseja saber mais sobre o assunto.

Texto: Ignacio de Alba
Fotos: Daniel Lobato e Ignacio de Alba
Publicado em Pie de Pagina em 6 de Outubro de 2019
Tradução: DaVinci
Notas, revisão e versionamento: Baderna James


Importante

Nota da Monstro dos Mares: Podemos não concordar com as ideias de Toby sobre alguns temas, mas concordamos plenamente que é necessário e urgente criar mais espaços sociais comunitários como o hacklab, a rádio livre e a biblioteca, independentemente de qualquer divergência.

  1. Nota da edição: Puebla, oficialmente Heroica Puebla de Zaragoza, é um município do México, capital do estado de Puebla. []
  2. Nota da edição: O Porfirismo na história do México, é o período de 30 anos durante o qual governou o país o general Porfirio Diaz. []
  3. Nota da edição: Grandes protestos em memória aos 51 anos (2019) do Massacre de Tlatelolco, onde militares abriram fogo contra centenas de estudantes e civis que protestavam contra a realização dos Jogos Olímpicos de 1968 na Cidade do México. []

AnarchySF: um repositório de ficção científica anarquista

AnarchySF é um catálogo online que faz a intersecção entre anarquia e ficção científica. O site é um repositório de código aberto para ficção científica anarquista e/ou de inspiração anárquica. Estão em destaque muitos livros, filmes e outras mídias que são evidentemente anarquistas em sua forma política ou de interesse para anarquistas e pesquisas de referência.

O acervo foi inicialmente coletado e organizado por Ben Beck (professor de história aposentado e escritor), que localizou e manteve o material por cerca de três décadas. No final de 2019 a coleção foi reorganizada e recebeu um novo visual pelos novos chegados do projeto, Eden Kupermintz (crítico musical de metal extremo) e Yanai Sened (que prefere fazer mistério sobre sua identidade).

Durante o processo de reorganização, a missão básica foi de torná-la muito próxima de como ele se manteve durante os últimos 30 anos. Nas palavras do próprio Ben, curador original do acervo:

“Ficção Científica é inevitavelmente o gênero mais adequado para uma reflexão sobre o anarquismo, especulações sobre como pode ser o futuro, mesmo as utopias e as distopias na ficção por vezes ocupam um espaço de “subgênero” da ficção científica. Como sabemos, faz tempo que a ficção científica atrai anarquistas.

Também existe uma tendência muito natural de se olhar para o espaço e a exploração espacial como uma metáfora para a liberdade tão querida por anarquistas. Mas isso não quer dizer que a ficção científica seja em si essencialmente anarquista. O site procura apenas investigar o quanto a ficção científica tem sido criada por anarquistas e simpatizantes da anarquia, como tem sido tema de análise da crítica anarquista, ou de fato atacada por essa crítica.

A coleção é apenas uma visão anarquista da ficção científica, se você quiser.”

O objetivo do site, desde a sua reconstrução, é utilizar ferramentas modernas de gerenciamento de conteúdos para incentivar a participação da comunidade em torno do acervo e colaborar em sua manutenção. Ninguém conseguiria mantê-lo atualizado e preciso por muito tempo; além disso, esse não seria um “modo propriamente anarquista” de se fazer as coisas. Contando com os princípios da ajuda mútua, AnarchySF convida as pessoas para ajudar a manter o acervo. É possível acessar um guia de colaboração para saber como é possível se envolver no projeto.

Por que AnarchySF é anarquista?

Naturalmente o projeto tem uma essência anárquica. Para alguns dos colaboradores e mantenedores do site, o anarquismo pode ser uma perspectiva política ou um modo de vida. No entanto, nem todas as pessoas que mantêm ou contribuem para o projeto precisam ser, necessariamente, anarquistas; geralmente, anarquistas podem ser reconhecidas em muitas cores e não cabe ao projeto criar ainda mais distinções de ideias. Em vez disso, este acervo vê a anarquia como um objeto a ser descoberto, uma ideia a ser estudada. O projeto deseja ser um repositório de conhecimento para todas as pessoas interessadas na anarquia, independentemente de sua afiliação ou identificação política.

Conheça AnarchySF: www.anarchysf.com

Zapatistas: lições de auto-organização comunitária

A primeira intenção de acabar com a política e substitui-la pela justiça transformadora baseada na comunidade está em andamento nos E.U.A., mas existem comunidades que têm experimentado a auto-organização, como os Zapatistas em Chiapas.

À medida em que a pandemia de Covid-19 sufoca os sistemas de saúde e as economias, inclusive nas nações mais avançadas, as redes mútuas e os esforços de auto-organização têm surgido em todo mundo como amostra de solidariedade pandêmica.

Com o assassinato policial de George Floyd, E.U.A., vê-se uma expansão da auto-organização: de doações e fundos de ajuda mútua para manifestantes até patrulhas cidadãs em Mineápolis e uma zona autônoma livre de política em Seattle.

A partir do caso Floyd, a primeira intenção de abolir a polícia e acabar com a política, e substitui-las pela justiça transformadora baseada na comunidade está em andamento nos E.U.A., mas existem comunidade que têm experimentado a auto-organização sem recorrer aos estados que as oprimem ou espoliam, como Rojava no noroeste da Síria, Cooperação Jackson no Mississippi e Zapatistas em Chiapas.

Os zapatistas, em particular, têm passado os últimos 20 anos organizando suas comunidades de maneira autônoma em relação ao Estado em todas as esferas da vida, desde a política e o sistema de justiça até a atenção médica, a economia e a educação. À medida que somos testemunhas dos limites do que se pode mudar radicalmente, a experiência zapatista é mais relevante do que nunca.

Sendo aprendiz de novas formas de democracia direta e autogoverno apátrida, viajei para Chiapas em dezembro passado para participar de um programa de um mês, chamado “Celebração da Vida”, que culminou com a celebração do 26º aniversário do levante Zapatista de 1994, quando campesinos indígenas de Chiapas se organizaram para defender seus direitos e terras contra o Estado e os grandes proprietários.

Embasando-me na investigação etnográfica existente, assim como em minhas próprias entrevistas e conversas durante a viagem, exploro neste texto as características mais instrutivas da organização social dos zapatistas: tomada de decisões de baixo para cima, justiça autônoma, educação, sistemas de saúde e economia cooperativa, com a esperança de que possamos nos beneficiar da experiência deles ao construir nosso próprio “outro mundo”.

As pessoas decidem

Nos 26 anos posteriores ao levantamento inicial, os zapatistas se converteram em uma voz de destaque dos povos indígenas de México e construíram um sistema autônomo de fato de autogoverno em territórios contíguos ao estado de Chiapas, habitados pelos defensores do movimento.

Um princípio-chave subjacente no projeto zapatista, que assegura que as instituições autônomas sirvam às pessoas, é “mandar obedecendo”, o que significa liderar obedecendo. Isso implica que os líderes políticos não tomam decisões em nome de sua comunidade como seus representantes, mas atuam como delegados da comunidade, implementando as decisões tomadas nas assembleias locais, um mecanismo tradicional de tomada de decisões.

Representantes existem no nível da aldeia e, diferente das assembleias tradicionais do México, incluem mulheres, cujo empoderamento está no centro da revolução zapatista. As assembleias elegem delegados por um conselho municipal, e seguem no nível da estrutura zapatista.

Logo, em nível regional, vários autônomos são representados por delegados em Juntas de Bom Governo (JBG), o Conselho de Bom Governo, chamados assim em contraste com o ‘mau’ governo mexicano. Os membros da JBG servem durante 3 anos de forma rotativa, em turnos de apenas algumas semanas. Essa rotação frequentemente se destina a prevenir o aparecimento de redes de clientelismo.

O mapa é cortesia de Maël Lhopital, voluntario do DESMI.

Qualquer ideia proposta em um nível administrativo superior passa pelo processo de consulta com cada comunidade, e após isso é que cada delegado leva a opinião de suas comunidades para a reunião municipal. Há uma forte ênfase na tomada de decisões por consenso, mesmo que isso signifique, constantemente, assistir a reuniões de um dia em que todos devem ser escutados, e que as decisões não aconteçam até que se chegue ao entendimento geral.

Os líderes são eleitos de acordo com o peso da tradição indígena, a obrigação de servir à comunidade, e se comprometem a postos de responsabilidades não-remunerados. As comunidades têm direito de revogar o mandato daqueles funcionários que não cumpram com seu dever de servir às pessoas.

A formação político-militar EZLN (Exército Zapatistas de Libertação Nacional), que se organizou clandestinamente em 1983 e alcançou o levante de 1994 e as ocupações de terras, existe paralelamente aos três níveis de administração autônoma e da direção política do movimento. Bem organizado hierarquicamente, seu corpo mais alto é formado por civis eleitos por assembleias comunitárias. Além disso, sua presença nos assuntos comunitários é limitada para garantir um verdadeiro autogoverno democrático das comunidades zapatistas.

O subcomandante Moisés fazendo uma declaração na celebração de aniversário, rodeado pelo resto da CCRI-CG, o corpo mais alto do EZLN (Comitê Clandestino Revolucionário Indígena – Comando Geral) | Foto: Anya Briy

Após adotar uma posição de rechaço a qualquer ajuda do chamado governo ‘mau’, os zapatistas assumiram a função estatal de prestação de serviços nas comunidades afiliadas ao movimento. Isso significa construir seus próprios sistemas comunitários de justiça, educação, saúde e produção.

Sistema de justiça

O sistema de justiça zapatista tem ganhado confiança e legitimidade, incluindo para além dos partidários do movimento. É gratuito, acontece nas línguas indígenas e é comprovadamente menos corrupto ou parcial em comparação com as instituições governamentais de justiça. Há, ainda, o que tem de mais importante: adota um enfoque restaurador, no lugar do punitivo, e coloca ênfase na necessidade de encontrar uma solução que satisfaça todas as partes.

Dentro da comunidade, o sistema possui três níveis: o primeiro nível se refere a questões entre os partidários zapatistas, como fofocas, roubos, embriaguez ou disputas domésticas. Tais casos são resolvidos pelas autoridades eleitas ou, se necessário, pela assembleia comunal, segunda a prática habitual. Ao resolver conflitos, as autoridades funcionam, em grande medida, como mediadoras, propondo soluções às partes envolvidas. Se não conseguem resolver, os casos passam, então, ao nível seguinte, municipal, no qual são tratados por uma Comissão de Honra e Justiça eleita.

Na maioria das vezes, as sentenças envolvem serviços voluntários ou multas; as penas de cárcere normalmente não excedem alguns dias. Como Melissa Forbis explica, o cárcere comunitário geralmente é apenas uma casa cercada com uma porta parcialmente aberta para que as pessoas possam passar para conversar e trazer comida. Quando quem cometeu a infração não tem meios e precisa pedir dinheiro emprestado aos membros de sua família para pagar uma sanção, estes também estão envolvidos e a prisão ajuda a prevenir uma transgressão maior. As questões domésticas relacionadas com as mulheres são abordadas pelas mulheres na Comissão.

Maria Mora oferece um retrato revelador do enfoque do movimento sobre a punição, documentando um caso em que os zapatistas emitiram uma sentença de serviço comunitário durante um ano por roubo. Aos declarados culpados permitiu-se oscilar entre o serviço com o trabalho em seus próprios campos de milho para que suas famílias não tivessem que compartilhar o castigo. A comissão explicou sua decisão da seguinte maneira:

“Pensamos que se simplesmente os prendêssemos, os que realmente sofreriam seriam os membros da família. Os culpados simplesmente descansariam todos os dias na prisão e aumentariam de peso, mas suas famílias precisariam trabalhar no milharal e descobrir como sobreviver.”

O nível mais alto do sistema de justiça, o JBG, se ocupa de casos que envolvem principalmente não-zapatistas ou outras organizações políticas locais, geralmente sobre disputas de terra, assim como as autoridades governamentais locais. Os não-zapatistas buscam o sistema de justiça autônomo não apenas quando têm disputas com membros das comunidades zapatistas, mas também quando experimentam um tratamento injusto por parte dos funcionários do governo; neste caso, os zapatistas podem decidir acompanhar os demandantes ao escritório público e debater em seu nome.

Embora os zapatistas tenham polícia, ela é bastante diferente de como estamos acostumados a pensar nisso. Como documenta Paulina Fernández Christlieb, não são armados, nem uniformizados, nem profissionais. Igual a outras autoridades, a polícia é eleita por sua comunidade; não são remunerados e não servem nesta função permanentemente. Cada comunidade tem sua própria polícia, enquanto nos níveis administrativos mais altos, os do município e da região, não têm. Descentralizados e desprofissionalizados, os policiais servem e estão sob o controle da comunidade que os elege.

Festival de dança que faz parte do longo programa do mês, chamado de “Celebração da Vida: membros da comunidade Zapatista comemoram a vida depois de 1994. As placas falam, “Educação”, “Saúde” e “Trabalho Coletivo”. Foto: Anya Briy

Educação

O sistema educativo zapatista está igualmente enraizado na comunidade. As escolas autônomas são administradas pelos chamados “promotores da educação”, principalmente jovens locais que ensinam em suas próprias comunidades sob a supervisão de um comitê educacional eleito por uma assembleia local.

Desde o lançamento do sistema educativo autônomo, os zapatistas têm levado a cabo programas de capacitação para preparar os promotores educativos e desenvolver um plano de estudos em colaboração com grupos solidários, ONGs e voluntários de fora, assim como em consulta com a população local. Atualmente as comunidades têm seus próprios profissionais que capacitam novos promotores. Assim como outros postos de autoridade e responsabilidade, os promotores não recebem salários e a comunidade apenas os ajuda no cultivo de seus campos de milho.

O plano de estudos está integrado na vida da comunidade e é desenhado para preparar uma nova geração para as tarefas de governança e autossuficiência, que incluem temas como autonomia, história, agroecologia e medicina veterinária. As aulas são ministradas tanto em espanhol quanto nas línguas indígenas, com ênfase na preservação das tradições e conhecimentos locais. A comunidade participa ativamente da escolha da metodologia e do plano de estudos, como mostra o comentário de um promotor de educação de uma das comunidades, citado por Bruno Baronnet:

“Consultamos o nosso comitê de educação e nossa assembleia sobre os verdadeiros conhecimentos que são importantes para nosso povo. São as pessoas que decidem e respeitamos suas opiniões, inclusive se as vezes não estou de acordo, como no outro dia durante a assembleia, quando me pediram que eu não jogasse com as crianças durante as horas de escola porque alguns pais pensam que não se podem aprender enquanto se divertem. Não sabia como dizer a eles que não estão de todo certo, mas os convencerei na próxima vez. (Tradução da autora, do Francês).”

Os jovens zapatistas estão representando suas vidas antes de 1994, fingindo beber cerveja e segurando um cartaz com o nome de um recente programa de ajuda governamental, Sembrando Vida.

Cuidados com a saúde

Os zapatistas também têm desenvolvido seu próprio sistema de saúde, enquanto ainda se utilizando da ajuda de especialistas não-zapatistas. A maioria das comunidades tem um voluntário local, um promotor de saúde, que recebe capacitação em medicina tradicional e moderna nos centros de saúde regionais organizados pelos zapatistas. Estes voluntários prestam serviços básicos em uma casa de saúde local.

O tratamento mais avançado disponível está nas clínicas localizadas em travessias de caminhos e em alguns centros municipais. A clínica em Oventic, por exemplo, é uma das mais sofisticadas: oferece cirurgia básica regular, atendimentos dentários, ginecológicos e oftalmológicos, abriga um laboratório, um canteiro de ervas, uma dúzia de leitos e está equipada com ambulâncias. Os comitês de coordenação de saúde, igual aos de educação, existem em cada nível administrativo, o que garante a participação das comunidades na administração do sistema de saúde autônomo.

Mulheres zapatistas que saíam de uma clínica localizada no centro de Morelia, onde se realizou o encontro internacional de mulheres, que também faz parte do programa de um mês e o aniversário. | Foto: Anya Briy

Nas comunidades mistas, onde os zapatistas coexistem com os não-zapatistas, os serviços autônomos estão abertos a todos. Me disseram, por exemplo, que pais não-zapatistas enviaram seus filhos para as escolas autônomas porque sabem que são de melhor qualidade. A mesma coisa se aplica às clínicas zapatistas, já que a falta de médicos nas comunidades indígenas é comum.

Produção: Para Todos Tudo, Para Nós Nada

O funcionamento do governo autônomo, escolas e clínicas, assim como de outros projetos coletivos, são financiados por meio do ingresso em cooperativas e coletivos de terras. Eles estão no centro da inspiração zapatistas de alcançar a autossuficiência econômica do Estado e construir uma economia baseada na distribuição equitativa dos recursos.

Embora as cooperativas e os coletivos coexistam com os terrenos familiares e o empreendimento individual, a participação no trabalho coletivo acontece de forma rotativa e é obrigatória. Também existem os bancos populares em forma de fundos rotativos que concedem empréstimos a baixo interesse aos membros da comunidade como base de apoio. Esses bancos geram fundos que se convertem em novos projetos coletivos. Alguns projetos coletivos são apenas para mulheres e têm a intenção de criar uma oportunidade para que elas ganhem confiança e participem da vida social de suas comunidades.

María, membro de uma comunidade zapatista, compartilhou sua experiência e compreensão sobre muitos aspectos da luta zapatista, incluindo o compromisso com o trabalho coletivo. | Foto: Anya Briy

Outro mundo é possível

Os desafios que o movimento zapatista enfrenta são muitos. Vão desde desertores, resultado da campanha de cooptação do governo por meio de subsídios e programas de melhoria, até a dependência financeira do financiamento por parte de ONGs solidárias e a persistência de tendências patriarcais e desigualdades internas.

Sem dúvida, apesar dos desafios, em 26 anos de luta pela autonomia, os zapatistas têm construído acordos sociais funcionais baseados na democracia debaixo para cima, cooperação e justiça comunitária, que colocam o bem estar da comunidade acima do benefício individual.

Através desses acordos, as comunidades zapatistas têm assegurado os direitos, a proteção e as necessidades básicas que o Estado mexicano tem lhes negado ou não pôde lhes proporcionar. Como assinalou recentemente Dora Roblero de Frayba, uma organização que vem acompanhando os zapatistas desde o princípio, os zapatistas podem ser a única comunidade no México mais preparada para resistir à pandemia, graças a sua auto-organização de serviços básicos durante anos.

Sabendo que os Estados não protegem e nem promovem serviços para tantos cidadãos em todo o mundo, a experiência zapatista oferece uma alternativa inspiradora centrada na comunidade.


Por Anya Briy, publicado em OpenDemocracy e traduzido por Ste.

Editoras anarquistas que mantêm vivo o espírito libertário na Colômbia

“Você tem todo o direito de copiar este livro total ou parcialmente, imprimir e distribuir por qualquer meio. Esse conteúdo não é protegido por nenhum monopólio cultural ou direito comercial; ao curso da história os livros são e serão gratuitos. Ninguém vai te culpar ou prender por distribuir ou realizar cópias; pelo contrário, ficaremos muito agradecidos se você fizer isso. O conhecimento se distribui livremente.”

Ao abrir um livro, raramente é possível se deparar com essa afirmação, não restritiva – como regra geral –, mas permissiva. Essa tem sido a premissa sob a qual acadêmicos, poetas, estudantes e militantes anarquistas publicam, de forma independente, distribuem os textos próprios e outros. Essas editoras fazem isso criando outros formatos, que visam uma produção com mais tiragem, diferente dos panfletos e fanzines publicados há mais de 20 anos em universidades e outros espaços libertários.

Alguns livreiros identificam a origem dessas editoras anarquistas na Feira do Livro Independente e Autogerenciada (FLIA, que começou em Buenos Aires, Argentina) que, a partir de 2010, mudou-se para Bogotá. Desde a primeira edição, os visitantes do evento literário começaram a se familiarizar com uma produção diferente, clandestina e artesanal, que incentiva a produção doméstica dos livros. Uma dessas pessoas foi Fabián Serrano, membro da editora Imprenta Comunera, da cidade Bucaramanga. “O bom de ter uma editora independente é que escapamos da imposição de autores renomados e personalidades para focamos apenas nos personagens que consideramos importantes“, diz Fabián, que juntamente com outros dois colegas, lançou oito publicações em apenas cinco meses.

Eles, como seus colegas de outras editoras, não estão preocupados em ter lucro, mas em espalhar seus pensamentos e ideias para o maior público possível. É por isso que o tempo todo eles resgatam conteúdos de anarquistas conhecidos, mas que não são publicados em grandes editoras ou editoras comerciais, como é o caso da obra de Emma Goldman, Piotr Kropotkin, Errico Malatesta, Uri Gordon, Henry David Thoreau e de personalidades com um lado libertário pouco conhecido, como Oscar Wilde ou Noam Chomsky. Para essas reedições, é mais complicado conseguir o texto para publicá-lo, por haver poucas cópias existentes; geralmente, os autores dessa corrente independente divulgam seus trabalhos sem restrições. “Sentimos que, quando criamos algo, isso não nos pertence mais, de modo que as pessoas assumem e se reconhecem neles, e isso é maravilhoso“, explica Iván Darío Álvarez, escritor, pensador anarquista e bonequeiro, fundador do teatro La libélula Dorada.

Pie de Monte é uma das editoras que faz esses resgates, mas que também quer apostar em novos escritores. Atualmente, a editora trabalha com textos de amigos e conhecidos, mas seu objetivo é que, mais tarde, mais pessoas sejam encorajadas a publicar seus trabalhos autorais. “Fizemos isso porque a ideia é que as pessoas saiam da dinâmica do mercado editorial e dos blogs e que resgatem a tarefa do livreiro e das livrarias. Isso sim, a única coisa que não tem discussão é que quem publica conosco deve deixar livres os direitos da obra“, comenta Santiago Lopez, membro da editora.

A conjuntura é outro fator importante nas reedições ou escritos originais: muitos textos são publicados em um determinado momento para demonstrar que as ideias anarquistas de várias décadas atrás ainda são válidas. Foi o caso da última publicação da El Rey Desnudo, a editora de Iván Darío e do poeta Juan Manuel Roca, USA nación de lunáticos, uma compilação de fragmentos de um ensaio que o escritor Henry Miller fez após o fracasso americano no Vietnã, um texto que foi lançado como uma crítica ao atual mandato de Donald Trump.

Embora os livros sejam o formato preferido para editoras anarquistas, brochuras, diários e jornais não são renegados. El Aguijón, uma editora criada dentro da Universidade Nacional de Medellín, em 2006, lançou uma seleção de contos e está preparando um novo volume. Porém, ocasionalmente eles tiram o jornal El Aguijón – Klavando la duda, para o qual recebem apoios financeiros que permitem dar continuidade em outros projetos. Você pode baixar os exemplares gratuitamente na página da editora.

O dinheiro investido é recuperado na maior parte das vezes, mas para reduzir custos ou acelerar o processo é comum alguns editores unirem forças. Rojinegro e Gato Negro reuniram textos como Estratégia e tática na prática anarquista, de Errico Malatesta, e Anarquismo e poder popular: teoria e prática sul-americanas, uma compilação de teorias e opiniões sobre anarquismo e poder popular. O número de cópias varia e, assim como alguns títulos chegam a 300 cópias, outros saem com apenas 30 exemplares.

Devido ao desconhecimento sobre os autores ou preconceitos que existem em relação ao anarquismo, poucos são os lugares onde é possível encontrar essas publicações em suas prateleiras. Em Bogotá, os mais comuns são La Valija de Fuego, Rojinegro, La Libélula Dorada, Luvina, El Dinosaurio, Árbol de Tinta e La Mandriguera del Conejo. Oscar Vargas, um dos fundadores da Gato Negro, diz que tentaram alcançar outros espaços, mas que não deu muito certo. “Isso foi difícil, porque em várias livrarias eles querem cobrar entre 30% e 40% do preço de capa, e buscam ter lucro por algo que nós não compartilhamos na mesma lógica. Somente alguns foram capazes de entender a proposta”, explica Óscar.

As publicações de Gato Negro. Foto cedida por Oscar Vargas.

Mas nem a clandestinidade, nem o baixo orçamento, foram impedimentos para alcançar outras partes do mundo. Por meio de conhecidos ou trocas por quilos, os editores colombianos levaram textos para Argentina, Chile, Equador, México, Peru, Uruguai, Brasil e Espanha. Os livros recebidos do exterior são vendidos para recuperar o dinheiro investido ou, como no caso da Rojinegro, são utilizados no Centro de Documentação Ácrata, uma espaço que fica nas suas instalações e que qualquer pessoa pode consultar o acervo ou fazer cópias.

Os preços baixos são a chave para alcançar mais pessoas: a maioria dos livros é vendida entre sete mil e quinze mil pesos, aproximadamente. (Nota do tradutor: O que equivale a um valor entre 10 e 20 reais) “Vimos que em feiras e eventos independentes, os metaleiros ou punks sacrificam parte da grana da birita porque estão interessados no que fazemos. É uma mentira que na Colômbia as pessoas não gostam de ler; elas não leem porque os livros aqui são muito caros”, explica Fabián.

Foto cedida por Oscar Vargas.

As editoras libertárias da Colômbia precisam ser mais divulgadas, mas seus editores estão satisfeitos com a situação atual e com o fato de que cada vez mais pessoas querem escapar da realidade do mercado e são incentivadas a publicar ou piratear o trabalho de autores que incomodam a outras editoras, ou mesmo ao estado. Essa aceitação vem aumentando e recentemente, por exemplo, uma tradução do livro de Iván Darío Álvarez e Juan Manuel Roca, Dicionário anarquista de emergência, começou a ser distribuído na França.

Para Roca, esse é um sinal da inconformidade latente que persiste na humanidade. “Anarquismo é como Drácula, que em todos os filmes eles o matam, mas em cada final ele acorda e está mais vivo do que os vivos. Há quantos anos eles decretam a sua morte e vemos que diversos movimentos de jovens e aqueles que não fazem parte de um partido se mobilizam de maneira tão vigorosa e sem limitações”, diz ele.


Por Andrés J. López, publicado em Cartel Urbano no dia 10 de Março de 2017.
Versão para o português por Baderna James.

Apoio Mútuo: boas-vindas

Este texto poderia dar boas-vindas a uma geração que nos próximos meses terá a oportunidade de vivenciar um conjunto de experiências chamadas de Apoio Mútuo. Seria ótimo estender os braços e receber as pessoas para esse novo momento. Porém, este não é cenário. Não é uma festa, mas a maior emergência humanitária do século 21. Haverá um mundo antes e depois do Novo Coronavírus.

O Apoio Mútuo já existe no cotidiano e no horizonte de muitas pessoas, grupos e formas de encontro social, bem antes de tentarmos classificar os comportamentos genuinamente humanos como algo de sua própria ontologia. Compartilhar os recursos que temos, dividir com quem atravessa necessidades muito semelhantes às nossas é o que nos constitui seres humanos. Mesmo que nem sempre sejamos uma humanidade tão humana assim.

Nos chamam seres humanos
Um tipo bem estranho de bicho
Herói de circo mexicano
Animais reprodutores de lixo
Nos chamam seres humanos
Mas isso nem sempre somos

Seres estranhos“, Os The Darma Lóvers, 2004.

Quem vai pagar a conta?

Sabemos que a emergência global do novo coronavírus, um verdadeiro apocalipse sanitário e social, está diretamente relacionada à falta de humanidade de “gestores” do mundo. São esses homens de negócios que, de dentro de seus espaços herméticos, tomam decisões sobre as vidas das singularidades desse tão controverso geoide. Para manter as economias funcionando, milhares de vidas se tornarão iguais a qualquer outro número que possa ser calculado por eles. Qual o preço do ar puro? Da água limpa, da comida sem agrotóxicos, do direito à moradia, do acesso à saúde… E quem pode pagar por tudo isso?

Aqueles economistas, nem tão Chicago Boys assim, estão fazendo as contas de quanto pode ser gasto para parecer que estão interessados em salvar vidas. Pois, afinal de contas, já está evidente que o trabalho deles é contar os corpos e calcular quanto cada cadáver custará para a economia. Uma bagatela em torno de 3%.

Entretanto, muitas pessoas seguem dando as costas aos “gestores do mundo, economistas, políticos, investidores da bolsa. São pessoas que seguem colaborando para suprir as necessidades mais básicas de pessoas que sofrem com as opressões de esquemas políticos e econômicos, sejam colegas de trabalho, vizinhança, indígenas, quilombolas, população de rua, LGBTQIA+, população negra e periférica, ou mesmo alguém que nem conhecem, como você e eu.


Apoio Mútuo em todas as direções

Em quase todos os lugares, as pessoas estão se articulando para fazer com as próprias mãos, sem esperar pela atuação de representantes ou intermediários, não apenas nas favelas ou nos grandes centros urbanos. A solidariedade e o apoio mútuo fortalecem os laços entre quem mais precisa e aquelas pessoas que mesmo diante da dificuldade podem se somar. Água, abrigo, alimento, afeto, atenção, cuidado. São inúmeras as possibilidades.

Algumas pessoas que conhecemos decidiram desenvolver um canal, um meio de comunicação, um espaço para compartilhar ferramentas e ampliar as redes de solidariedade, apoiando ações que conectam demandas ao fortalecimento de pessoas, grupos, coletivos e organizações que têm em comum princípios de inspirações anárquicas e anarquistas.

Conheça: apoiomutuo.com.br


Livro Livre Curió – Biblioteca Comunitária

Com a ajuda das contribuições da Rede de Apoio nossos livros e zines chegaram até a Biblioteca Comunitária Livro Livre Curió em Fortaleza! Estamos bem felizes em receber este tipo de carinho de rolês que recebem gratuitamente nossos materiais. Segue a mensagem compartilhada pelas compas no Facebook:

“Doação incrível que recebemos da Editora Monstro dos Mares através da colaboração de Ju Maya, para diversificar ainda mais os conteúdos Anarquista da nossa Livro Livre Curió Biblioteca Comunitária”

Conheça a biblioteca:

Uma biblioteca com liberdade e afeto
Perto de completar aniversário, pedi de presente para Anitta Moura que me ajudasse a construir uma Biblioteca de Livros Livres no bairro em que eu moro, o Curió. Fui prontamente atendido, não apenas por ela, mas por muitas outras pessoas, a Silma que doou a estante, a Socorro Acioli que mobilizou doações, minhas amigas e amigos e as próprias moradoras e moradores do bairro, em especial minha Mãe, Ritinha, uma mulher que sempre articulou atividades no bairro, como passeios, cinema, festa das crianças, grupo de idosos; minha irmã Lígia, uma leitora apaixonada; meu vizinho Vinícius, que conheci e se encantou com a ideia.

Assim nasceu, no dia 31 de Março de 2018 a Biblioteca Comunitária Livro Livre Curió. Nosso bairro está entre os 20 bairros com o menor IDH, não possui políticas permanentes de cultura, sua população é formada por pessoas de diversos outros bairros beneficiadas por uma política de habitação da antiga COHABE. Contudo, sua população, mesmo sofrendo com a violência policial, e a violência do abandono do Estado e Município, é inteligente, empreendedora, e principalmente, inteligente e criativa.

Nossa biblioteca não tem cadastro, não estipula prazos para leituras, não tem horário de funcionamento e estamos de portas abertas à todas e todos, que desejam nos visitar; Também recebemos permanentemente doações de livros de literatura, de preferência em bom estado.

facebook.com/livrolivrecurio

Dulcinéia Catadora: O fazer do livro como estética relacional

Por Livia Azevedo Lima* em trecho publicado em Akademia Cartonera

Dulcinéia Catadora é um coletivo formado por artistas plásticos, catadores e filhos de catadores que produz livros com capas de papelão, pintadas à mão, e, além disso, realiza oficinas, instalações, ocupações de espaços culturais, como bibliotecas, e intervenções urbanas.

O projeto derivou do coletivo Eloísa Cartonera, criado em março de 2003 pelo artista plástico Javier Barilaro e pelo escritor Washington Cucurto, em Buenos Aires, Argentina. Com intensa atividade editorial, o grupo argentino possui um catálogo com mais de 100 títulos, entre autores novos e consagrados. Conquistou reconhecimento artístico e social, cuja expressão pode residir no convite para participar da 27ª Bienal de São Paulo, em 2006, com curadoria de Lisete Lagnado, com título derivado da obra de Roland Barthes “Como viver junto”. Durante a Bienal, formou-se um atelier em funcionamento permanente. Ao grupo argentino somou-se a participação de catadores, filhos de catadores e artistas brasileiros, com mediação da artista plástica paulista Lúcia Rosa, que já trabalhava com material reciclado. A partir deste contato, e do envolvimento e trabalho de Lúcia Rosa, formou-se o projeto-irmão, Dulcinéia Catadora, que começou a funcionar no Brasil a partir de 2007.

O nome Dulcinéia Catadora é uma homenagem à catadora Dulcinéia, mas também é o nome da personagem feminina do livro “Dom Quixote de la Mancha”, de Miguel de Cervantes. O papelão usado na confecção dos livros é comprado da cooperativa Coopamare por R$1,00 o quilo, valor cinco vezes maior do que o praticado usualmente para efeito de reciclagem. Os livros são feitos com miolo fotocopiado em papel reciclado; encadernação simples, grampeada ou costurada; colados na capa de papelão pintada à mão com guache. A diagramação é feita pelos artistas e escritores e a seleção dos textos, por um conselho editorial formado por escritores que colaboram com o projeto e se alternam neste trabalho, como Carlos Pessoa Rosa, Rodrigo Ciriaco, Flávio Amoreira e Douglas Diegues, este último também colaborou para o coletivo Eloísa Cartonera e fundou, em 2007, a cartonera Yiyi Jambo, no Paraguai.

A seleção dos textos leva em consideração não apenas a qualidade literária e o conteúdo, como também o caráter sociopolítico, priorizando aqueles que atentem para as minorias sociais. Os autores cedem os textos, mediante autorização escrita e recebem, em contrapartida simbólica, cinco livros de sua autoria. Todos os livros podem ser traduzidos para o espanhol e divulgados por outras células do projeto na América Latina, (são elas): Animita Cartonera (Chile), Eloísa Cartonera (Argentina), Felicita Cartonera (Paraguai), Kurupí Cartonera (Bolívia), Mandrágora Cartonera (Bolívia), Nicotina Cartonera (Bolívia), Santa Muerte Cartonera (México), Sarita Cartonera (Peru), Textos de Cartón (Argentina), Yerba Mala Cartonera (Bolívia), Yiyi Jambo (Paraguai) e La Cartonera (México).

Essa rede de projetos pares que se formou na América Latina é um caminho alternativo ao mercado de arte e ao mercado editorial. O escritor que não conseguia se inserir em uma grande editora, agora tem a possibilidade de ser editado e o seu texto poderá circular por diversos países. Da mesma forma os catadores e os filhos de catadores que participam da oficina se abrem para novas possibilidades profissionais e desenvolvem seu potencial artístico. A soma desses esforços orientados para um objetivo comum, apesar de cada projeto possuir suas especificidades, denota, politicamente, a busca por autonomia e, esteticamente, a realização de um trabalho artístico que está focado no resultado das trocas entre os indivíduos que o produzem. As atividades do atelier geram renda, mas, sobretudo, promovem a autoestima e o intercâmbio de experiências entre pessoas com origens e repertórios diversos, que ali se encontram, em um espaço aberto, para o exercício do prazer de criar.

Livia Azevedo Lima cursa o terceiro ano da graduação em Comunicação Social com ênfase em Produção Editorial e Multimeios na Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo, Brasil. Escreve ficção e trabalha como estagiária de pesquisa no Núcleo de Documentação e Pesquisa do Instituto de Arte Contemporânea, em São Paulo.

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