A necessidade urgente de descolonizar a pesquisa social latino-americana (Entrevista com Silvia Cusicanqui)

Cuestiones de Sociología1 reuniu quatro intelectuais e acadêmicas latino-americanos para responder a questões sobre o âmbito da dependência intelectual e os dilemas que a teoria social latino-americana enfrenta. Silvia Rivera Cusicanqui da Bolívia; Jose Mauricio Domingues do Brasil; Arturo Escobar da Colômbia e Enrique Leff do México. Publicamos aqui a entrevista com Silvia.

Maristella: Muitos autores têm insistido que uma das características fundamentais da teoria social latino-americana é a sua dependência intelectual ou epistêmica dos conceitos e quadros teóricos desenvolvidos nos países centrais. Alguns deram um estatuto teórico a esta dependência através do conceito de “colonialidade do conhecimento” (Quijano, Lander). Como encara este problema? O que significa, então, pensar nas ciências sociais da América Latina no século XXI, no quadro da modernidade avançada e do atual sistema de dominação? Existe uma perspectiva latino-americana para pensar os problemas atuais a partir de uma perspectiva da teoria social?

Silvia: Essa formulação não é nada nova, e se por “estatuto teórico” se refere à instalação desta ideia nos centros acadêmicos hegemônicos, poderia te dizer que se trata de uma academia muito sem memória. Em vários territórios da América Latina, e também nos Andes bolivianos, a crítica à colonização mental das elites tem uma longa história. No nosso caso, com Rossana Barragán tentamos uma síntese desta genealogia no livro que publicamos em La Paz sobre os estudos da subalternidade na Índia.2 Na apresentação do texto entrelaçamos a nossa leitura do grupo Estudos Subalternos com uma reflexão sobre as contribuições da historiografia social argentina, a etno-história e antropologia peruanas, e a contribuição vital mexicana e africana (1997) para a produção social e historiográfica boliviana dos anos 80 e 90.

Recentemente, tracei esta genealogia própria até o início do período colonial na obra do escritor Chinchaysuyu Waman Puma (Rivera, 2015). Creio que o seu trabalho, através da montagem da imagem-texto, é um ensaio visual teórico. Em outras palavras, Waman Puma compõe uma sintaxe para expor a sua teoria de domínio colonial, tanto como uma descrição etnograficamente densa como uma crítica teórica irrefutável da ilegitimidade desse sistema e das suas falácias.

Gostaria de apresentar brevemente um exemplo que pertence ao horizonte liberal do colonialismo (1870–1920). Um livro de Franz Tamayo (1879–1956) aborda de forma autocrítica a mestiçagem boliviana como uma síndrome de cruzamento psicológico, que ele chama bovarysmo, fazendo alusão ao romance de Flaubert, Madame Bovary. Esta noção me servirá de metáfora para compreender o bloqueio que nos impede de sermos memoráveis com a nossa própria herança intelectual, uma vez que é paradoxal e lamentável que tenhamos de legitimar as nossas próprias ideias recorrendo a autores que tornaram os assuntos do colonialismo em moda, ignorando ou menosprezando obras teóricas anteriores, que, embora não utilizassem as mesmas palavras, interpretaram e questionaram a experiência do colonialismo intelectual com profundidade e precisão. Em Creación de la pedagogía nacional3 , a autora chamou de bovarystas aos “intelectuais de gabinete” que trouxeram programas educacionais franceses para instalar e imitar no país uma pedagogia elitista e moderna apenas na aparência. Do seu lugar de poeta de prestígio (embora obscuro e mal compreendido), o seu rigor argumentativo e o seu gesto controverso provocaram um questionamento radical das práticas e estilos de ser daquela intelligentsia crioula4 que o rodeava, admirava e desprezava.

Ao contrário do que acontece hoje, quando tudo é escrito e falado, e os círculos hegemônicos dos alfabetizados criam satrapias5 políticas (o parlamento, o poder judicial) ou espetáculos midiáticos para nos enganar; no tempo de Franz Tamayo o foco era uma cultura oral gestual que se traduzia em códigos corporais não ditos mas socialmente inteligíveis: códigos de comunicação que também estruturaram hierarquias e desprezos dissimulados. Tamayo não contesta o que os seus contemporâneos escreveram: considerou-o uma aglomeração vulgar de citações de autores europeus, nem sequer foram bem traduzidas. Mas não foi por ter rejeitado a herança da Europa – a sua poesia em formato grego é testemunho disso – mas por ter reivindicado a um gesto mais autônomo e inteligente em relação a ela; como faria Veena Das6 um século mais tarde. Tamayo foi também inspirado por Nietzsche e pelo vitalismo alemão do seu tempo, bem como por uma vasta biblioteca filosófica e literária francesa, o que de forma alguma prejudica a sua abordagem das realidades multiétnicas (como diríamos hoje) do seu ambiente. Foi o seu gesto corporal e o seu olhar, assim como o seu conhecimento reflexivo do Aymara, que o diferenciou dos seus contemporâneos.

O que Tamayo rejeita não são as ideias e princípios básicos da episteme europeia, mas a forma como são adotados em países como o nosso: no boca a boca, de uma forma submissa e reverencial. A sua análise, pelo contrário, baseia-se no escrutínio da alma do mestiço que realmente existe no seu espaço/tempo, como um ser esquizofrênico, dividido e bipolar, incapaz de criar uma nação própria ou de habitar um território próprio. Este diagnóstico é vital em Tamayo e lança as bases para fazer do double bind7 mestiço um poder criativo, em vez de aprofundar o binarismo e com ele a disjunção colonial que nos impede de sermos nós próprios.

A genealogia que estou tentando traçar do colonialismo na cultura literária boliviana está, pela mesma razão, ligada às urgências do presente. Quão pertinente é Tamayo lido desde o aqui e o agora. Ele define o bovarysmo como um estado de “insatisfação inovadora” que se move num “contexto de repressão e convenção social”. Não é isso que está acontecendo com os recentes escândalos envolvendo Evo Morales8 , que a imprensa internacional está “apimentando” à sua maneira? Não é a sociedade boliviana descarregando a sua própria culpa e dor familiar, privada e até inconsciente, fazendo da vida de Evo Morales uma causa de diatribe moral e sexual? Faz, mas não percebe que o primeiro a ser julgado e apontado deveria ser o índio dentro de nós.

Fausto Reinaga, nos anos 1960-1990, elaborou sobre as críticas à “intelligentsia da cholaje boliviana”, um agudo raio-x do colonialismo intelectual na Bolívia, o que lhe valeu o estigma de ser um personagem intratável e ultrarradical. Não é um fato menor que tenha sido Reinaga – e não Sartre ou Balandier – quem introduziu a obra de Frantz Fanon e outros autores da descolonização africana no debate político boliviano dos anos 70. Com honrosas exceções, os autores agora “descoloniais/decoloniais” ou “pós-coloniais” não conseguem escrutinar o ethos do intelectual colonizado tão profundamente como Reinaga, e isto revela-se nos próprios caminhos que temos vindo a seguir para compreender os processos de libertação da Índia e as lutas de descolonização no nosso continente.

Maristella: O que significa, então, pensar nas ciências sociais da América Latina no século XXI, no quadro da modernidade avançada e do atual sistema de dominação?

Silvia: Creio que outra ciência social deve ser feita, uma ciência que não divorcie o cérebro do corpo, a ética da política, o fazer de pensar. A ciência social realmente existente não difere muito daquela que Tamayo criticou. E as obras de Reinaga abundam em conceitos/metáforas em cuja bricolagem vislumbro outro tipo de teoria sobre o colonialismo intelectual na América Latina e sobre o colonialismo em geral. Por outro lado, a modernidade que Tamayo experimentou não é muito diferente da de hoje: continua a ser uma estrutura de pilhagem e colonização mental. Com um fator agravante: nas primeiras décadas do século XX havia muito mais pessoas urbanas, mestiças e de elite em La Paz, que falavam Aymara perfeitamente, enquanto hoje a dimensão simbólica do índio se tornou pigmentada e baseada em simulacros, o que nos mostra que estamos perdendo a batalha linguística. No que diz respeito à colonização mental, as ciências sociais – junto a várias outras – deveriam concentrar-se na criação de ferramentas conceituais, técnicas e materiais para resistir à pilhagem tanto de recursos materiais como de pessoas (mãos, cérebros) ou, pelo menos, para nos ajudar a sobreviver a ela.

Para além da pilhagem, esta modernidade imposta baseia-se na cultura do direito. A ciência social hegemônica tem de lidar com um fosso muito profundo entre a lei e a sua prática, entre a teoria e a violação da teoria. Colocar-se estritamente num dos polos deste binário é uma atitude de suicídio coletivo, que é transferida para todo o pensamento público. Face a este estado de confusão, o que a ciência social deveria estar fazendo era revolucionar a episteme. Criar um campo de jogo entre o patrimônio europeu e o nosso próprio patrimônio, no qual possamos, com autonomia, recriar um pensamento e um gesto capaz de ultrapassar o “double bind” ou a esquizofrenia colonial de que Tamayo falou. E isto deve ser feito por qualquer meio, não só nas ciências sociais mas também na matemática, agronomia, engenharia e na multiplicidade de disciplinas que são necessárias para o presente e agora da humanidade e do planeta, não só da ciência.

Acima de tudo, a nova ciência social deveria abandonar a camisa de força da sociedade, deixar de se limitar às coisas humanas, relações e conflitos sociais, e tornar-se mais uma das ciências da vida. É por isso que me sinto muito insatisfeita com as ciências sociais existentes, considero-as como satrapias. Esclareço que tenho o luxo de dizer isto porque agora estou livre da universidade, eu me aposentei e com várias amigas e colegas criamos um espaço9 no qual patrocinamos um “curso livre” no Verão e no Inverno, entre muitas outras atividades. A geração mais jovem de intelectuais e acadêmicos que trabalham na universidade tem de lidar com coisas mais danosas e vastas, como as revistas indexadas – que tive a sorte de não conhecer – ou a excessiva carga administrativa imposta às universidades pelo neoliberalismo.

Mas entrar e sair da academia não é o mesmo que dizer entrar e sair da modernidade. O que entendo como o principal desafio é ser autenticamente moderno e, ao mesmo tempo, conectar com o mais antigo, para que, a partir desta contradição ou anacronismo, possamos conspirar – dentro e fora da universidade – uma esfera pública inclusiva, democrática e intercultural (para dizer em termos convencionais). Para mim é central reconhecer que a teoria não é suficiente, as ciências sociais não são suficientes, a universidade e a academia não são suficientes para compreender o mundo em que vivemos hoje. E acredito que, ao longo de Abya Yala, este processo de “entrar e sair da academia” está permitindo a renovação do pensamento e a sua melhor articulação com as práticas comunitárias, populares e coletivas. Na fronteira entre o mundo universitário e o seu exterior, iniciativas como a que acabo de descrever estão proliferando, e eu as vejo em vários países do nosso continente.

Maristella: Existe uma perspectiva latino-americana para pensar nos problemas atuais a partir da teoria social?

Silvia: Não. Pelo menos não dentro desse ponto, como parece estar definido na sua primeira pergunta. Uma teoria/prática social descolonizante é um processo contínuo, mas a sua verbalização ainda tem de ser construída; ainda está a gaguejar e dispersa. Não é sequer claro qual será o formato deste discurso, num contexto de proliferação e democratização das comunicações por satélite. Creio que o que é feito nas redes, ou no teatro, ou na arte latino-americana, é muito mais sensível do que a universidade ou academia paraestatal, em termos conceituais, face às realidades multifacetadas do espaço social em que vivemos.

Novos espaços para a produção de teoria/prática social surgiram também: espaços marginais e fronteiriços, mas, ao mesmo tempo, proliferando. Iniciativas de rua, lutas contra a impunidade, plataformas em torno dos direitos sexuais e uma diversidade de iniciativas práticas em defesa do meio ambiente constituem cenários ideais para uma “pesquisa atuante” ou “pesquisa militante” para além da utilidade, para as comunidades e organizações de base. Refiro-me também a intelectuais – tais como Silvia Federici, Rita Segato, Margara Millan, Veronica Gago, Suely Rolnik e a mim mesma – que dialogam em vários níveis de abstração com intelectuais de base nos seus respectivos espaços ou países. Todas estas redes são a coisa mais próxima de uma “ecologia do conhecimento” que tenho podido observar. Mas com um adendo: é também “ecologia de sabores”, e refiro-me às redes de autonomia alimentar, projetos ambientais, etc., que pensam os problemas não só através da pesquisa acadêmica e da publicação dos seus trabalhos, mas também através da participação intensa em feiras, espaços alimentares conscientes, cooperativas alimentares e muitas outras atividades.

Não tenho acesso suficiente a tudo o que se passa nas universidades e centros de pesquisa de vários países do continente para poder ponderar os avanços teóricos que estes novos fenômenos trouxeram, mas posso dizer a vocês que nos últimos anos li com maior interesse do que antes os debates latino-americanos nas ciências sociais e humanas, e fico feliz com o fato de muitos deles estarem a partir de uma tangente ou descartando abertamente o antropocentrismo dominante – e o seu descendente, o eurocentrismo.

Por Maristella Svampa
Publicado em Iberoamérica Social: Revista-red de estudios sociales.
Tradução de Fernando Rios
Revisão e versionamento: Baderna James


  1. Nota da edição: CUSICANQUI, Rivera. Domingues; Escobar, y Leff, (2016). Debate sobre el colonialismo intelectual y los dilemas de la teoría social latinoamericana. Cuestiones de Sociología, v. 14, p. e009. []
  2. Nota da edição: RIVERA CUSICANQUI, Silvia; BARRAGÁN, Rossana. Debates Post Coloniales: Una introducción a los estudios de la subalternidad. Historias, SEPHIS y Aruwiyiri, La Paz, 1997. []
  3. Nota da edição: TAMAYO, Franz. Creación de la pedagogía nacional. Linkgua, 2019. []
  4. Nota da edição: Por intelligentsia crioula, se compreende uma vanguarda intelectual crioula []
  5. Nota da edição: Pessoa que sabe governar ou mandar com astúcia e inteligência, geralmente abusando de seu poder. []
  6. Nota da edição: VEENA DAS é professora da cadeira Krieger-Eisenhower de antropologia, professora de humanidades da Johns Hopkins University e membro fundador do Institute of Socio-Economic Research in Development and Democracy. Entre seus livros, está Violence and Subjectivity [Violência e Subjetividade], que coeditou com Arthur Kleinman, Mamphela Ramphele e Pamela Reynolds. []
  7. Nota da edição: Duplo vínculo, do inglês double bind, é um dilema da comunicação onde indivíduo (ou grupo) recebe duas ou mais mensagens conflitantes, onde uma nega a outra. Isso cria uma situação na qual uma resposta bem-sucedida a uma mensagem resulta em uma falha na resposta à outra (e vice-versa), de modo que a pessoa estará automaticamente errada, independentemente da resposta. O duplo vínculo ocorre quando a pessoa não consegue enfrentar o dilema inerente e, portanto, não pode resolvê-lo nem sair da situação. A teoria do duplo vínculo foi descrita pela primeira vez por Gregory Bateson e seus colegas, na década de 1950. https://pt.wikipedia.org/wiki/Duplo_v%C3%ADnculo | A alegoria do cavalo no hospital também pode ser utilizada como analogia ao double bind. []
  8. Nota da edição: Entrevista realizada no ano de 2017. Na ocasião (além de outras situações) Evo conseguiu a liberação do Tribunal Constitucional para disputar a reeleição indefinidamente. A corte do país determinou em novembro de 2017 que o limite de dois mandatos presidenciais era “uma violação dos direitos humanos”. A oposição acusou o tribunal de passar por cima do resultado do referendo. []
  9. El Tambo Colectivx Ch’ixi, ciudad de La Paz, Bolivia. []

A radical pós-vida de Frantz Fanon

Um documentário que retoma as ideias de Frantz Fanon do passado e as coloca no caminho de como suas ideias estão ressoando com os jovens de hoje ao redor do planeta.

Quando Frantz Fanon estava nos últimos estágios da leucemia, aos 36 anos, ele foi levado para um hospital em Bethesda, Maryland, nos Estados Unidos, para uma cirurgia. Seu filho de 5 anos, Olivier, andando por lá e vendo a chegada de sangue para transfusão, vendo as bolsas de sangue, temeu que seu pai houvesse sido cortado em pedaços. O pequeno Olivier mais tarde encontrou flamulando uma bandeira da Argélia em uma rua desde a brutal e recorrente guerra Franco-Argelina, na qual ambos seus pais estiveram profundamente engajados. Esse era, até então, seu único entendimento de violência e sangue no mundo.

Eu me recordei desta história de partir o coração, incluída na biografia de Fanon feita por David Macey, durante a triagem do filme de Hassene Mezine, Fanon Hier, Aujourd’hui (Fanon: Ontem, hoje), com a participação de Olivier Fanon, agora adulto, lendo trechos do trabalho do pai. Entrevistas com ele e uma nota particularmente melancólica para o belamente composto sumário da vida de Fanon compõe a porção ‘ontem’ da primeira metade do filme. “Eu estava moldado em uma cena da Guerra da Argélia”. Olivier relata como foi viver marginalmente devido a ameaças constantes à vida de seu pai.

Mezine encerra a história de Fanon – a vida vivida desviantemente por um curto, enérgico e explosivo tempo – entre seu começo como um soldado lutando contra o nazismo aos 18 anos na II Guerra Mundial, até sua “última luta contra o colonialismo”. Aqui, o foco é nos dias em que Fanon esteve na Argélia, começando com seu posto em Blida, onde ele foi apontado como o médico-chefe no hospital psiquiátrico. Pegando a Estrada da recente publicação de Alienação e Liberdade: Frantz Fanon, na qual são recuperados e traduzidos a maioria de seus escritos psiquiátricos, o filme também se atenta ao trabalho psiquiátrico de Fanon no centro de seu pensamento anticolonial. Foi em Blida que ele estava disposto a tentar novas abordagens, métodos progressistas em um lugar e momento em que o colonialismo e o tratamento racista dos pacientes norte-africanos havia se tornado regra.

Fanon foi estagiário do Dr. Francois Tosquelles, que havia levantado a questão paradigmática, “Como você pode tratar pacientes se a instituição em si está doente?” e havia inventado a psiquiatria institucional. Levando estas ideias para mais longe, Fanon reorganizou completamente as atividades e tratamentos no hospital, incluindo arte terapia, música, sessões de contação de história, e até mesmo locais para arremessos e futebol. O filme alterna entre imagens antigas e novas do hospital em Blida, movendo de fotos ameaçadores de correntes, algemas e cintos para imagens de pessoas relaxando no café do hospital com o porta-retrato de Fanon pendurado em destaque na parede, evidência da longa permanência das mudanças estruturais que fez ali.

O filme toma o olhar por meio de Fanon no tempo em que era revolucionário na luta da Argélia até lentes íntimas e pessoais – histórias de amigos com quem se reunia nas refeições e tinha longas e agitadas discussões sobre a guerra; Fanon tocando guitarra e cantando nas festas de fim de ano, Fanon caminhando pelo seu quarto vazio, sem mobílias, no qual ele ditou seu livro todo para sua assistente Marie-Jean Manuellan; Fanon empurrando o pequeno Olivier em seu triciclo. Todos estes fragmentos de memória permitiram que o público acessasse o sociável, agradável e vibrante Fanon vivo – sendo sempre alguém com a comunidade, e que tinha energias ilimitadas e ideias sobre a luta colonial e as injustiças em todo lugar.

Frantz Fanon brincando com criança

A inovação trazida por este documentário é simples: um curto retrato da companheira de Fanon em vida e amor, Josie. Resumido em um amor revolucionário, “Argélia serviu como catalisador para aproximar Fanon e minha mãe”, explica Olivier, “Ele estava lá nos campos de batalha, nas fronteiras”, acrescenta. Sem dúvida, Fanon, Josie e a Argélia eram indissociáveis.

Enquanto Josie Fanon foi deixada de lado pelos livros de história, esta curta homenagem faz o trabalho necessário de incitar e relembrar os especialistas em Fanon a avaliar a extensão em que a revolução é continuamente enquadrada como masculina, com as mulheres apenas tratadas como acessórios temporários para grandes projetos. Josie foi uma figura respeitada e amada que continuou o seu trabalho como jornalista na Argélia e foi uma forte aliada do movimento anti-apartheid na África do Sul, permanecendo essencialmente sem medo e engajada nas políticas até sua morte em 1989.

Após realizar muitas novas interações na biografia de Fanon, a sessão “hoje” mostra-se o ponto crucial do documentário. Ela contém a longa e robusta tese: a ideia de que o trabalho de Fanon tem sido transformador e influente, e que indubitavelmente possui radicalidade após sua vida.

Qual é, com tudo isso, a relevância de Fanon hoje? Diferente de Che Guevara, Fanon não se tornou um ícone de destaque. Não existem camisetas, broches, sacolas nas quais ele aparece, e isso é simplesmente porque as ideias de Fanon não são facilmente consumidas, nem servem para curtos e concisos lemas. Até como movimento de alerta para o direito global que agora cria raízes, que também tem ferocidades beligerantes e ideologia de resistência decolonial.

O documentário demonstra que Fanon tem muito o que oferecer para a juventude de hoje, que é privada de seus direitos pelas políticas econômicas neoliberais, alimentando o racismo pernicioso e profundamente radicalizado justamente devido à ampla disponibilidade online de uma lista de injustiças, desigualdades e corrupção no mundo. “Miséria é o único destino prometido para centenas de milhões de humanos”, a narradora Marie Tsakala estoicamente declara.

A jornada do filme começa na Martinica, local de nascimento de Fanon (onde o documentário exibe a audiência entusiasmada em um auditório massivamente lotado). Mezine estava surpreso em saber que o trabalho de Fanon era pouco conhecido na Martinica. Ademias, tal recepção ansiosa talvez evidenciasse que ali havia um desejo de olhar para além dos erros de estereótipo de Fanon como um “apóstolo da violência”, e a fome real de retomar suas ideias, que talvez possam oferecer respostas para problemas do presente.

Em Portugal, o rapper e ativista Flàvio Almada “LBC Soldjah” falou o quanto havia sido transformado por Pele Negra, Máscaras Brancas. O líder em “Plataforma Gueto”, um movimento social negro que inventa métodos para educação popular e construção comunitária, Almada reclama do racismo institucional e da violência policial contra a população negra arraigados em Portugal. Portanto, as noções fanonianas de que “nós nos revoltamos porque não podemos respirar” ressoam como urgentes. As ideias de Fanon são importantes porque ele ilumina o que não é culpa dos povos marginalizados, e que não são seus destinos, explica Almada, mas o racismo e a violência são ideologicamente organizados, e podem ser decolonizados, erradicados e superados.

Viajando para a França, África do Sul e Nigéria, o documentário pretendeu seguir a relevância de Fanon para a geração mais jovem intensamente consciente do fato de que o imperialismo continua inabalável em um rol de criativas e enganosas mutações. “Nós não somos os ‘condenados da terra’ falados por Fanon,” explica Houria Bouteldja ativista franco-argelino. “Nós somos os sujeitos pós-coloniais da Europa; nós somos o Sul no Norte.”

imagem do Espaço Frantz Fanon

O próprio Hassane Mezine é muito o produto dessas ideias, e escolheu fazer este documentários por causa de sua “identidade argelina”, com a qual tinha conflitos enquanto crescia na França. Ele explica que é “confrontado com os mitos do republicanismo francês sobre justiça e igualdade, que não são realmente aplicados quando você nasceu fora, em uma colônia histórica francesa.” Para Bouteldja, assim como para Mezine, Fanon esclarece o processo como um colonialismo interno, e seus escritos oferecem estratégias para se decolonizar destas estruturas sufocantes.

Observações excepcionalmente fortes vêm do jovem ativista Ibrahima Diori em Niamey, Nigéria, que disse que as ideias fanonianas se tornaram particularmente relevantes em seu país pois ele tem um papel central na exacerbação do que chamam de “crise migratória”. As leis de divisão colonial entre a África Negra, a África Branca e o Norte da África evitam liberdades internas de movimentação; Como os chefes de Estado das nações norte-africanas se tornaram agentes das agendas europeias, fronteiras foram estendidas e se proliferaram ao longo da África, se tornando “um jogo de isolamento instituído pelas políticas anti-migratórias europeias.” Apesar das estatísticas que provam repetitivamente que a maioria dos migrantes não deseja entrar na Europa, mas pretende viajar livremente pela África, este discurso é promovido na mídia como uma justificação da draconiana e repressiva das políticas de fronteira.

Diori pleiteia a simplificação das relações entre os humanos, e Fanon oferece a ele uma ponte para os ideais de solidariedade e unidade. Salima Ghezali, jornalista e ativista, faz uma reflexão similar em Argel, Argélia, e fala em um discurso racista interno que tem sido combatido pelo grupo ao qual Fanon referiu-se como a corrupta “burguesia nacional” no contexto dos refugiados e migrantes oriundos da África.

Como a jornada de Fanon continua, parece claro que mulheres são a vanguarda dos movimentos de massa contemporâneos contra o racismo, ganância corporativa e colonialismo estrutural. Tal quadro fica ainda mais evidente quando Mexine termina com uma sessão na Palestina com Samah Jabr, que é uma das 22 pessoas exercendo a psiquiatria e a única mulher na profissão na Costa Oeste. Profundamente influenciada pelos escritos de Fanon, Jabr explica que “o trauma descrito nos manuais ocidentais não parece similar ao trauma que temos na Palestina.” Ela compara um grupo oprimido com uma sobrevivente de estupro que se culpa pelo estupro e imagina que ela inicialmente mereceu isso. Um grupo oprimido como os Palestinos tem que superar seu imenso complexo de inferioridade, e atuam inspirados pelo potencial terapêutico das teorias de Fanon, acrescenta Jabr. Em um movimento de poder simbólico, Mezine projeta as palavras de Fanon no rosto radiante de Ahed Tamimi, uma garota adolescente que já foi presa por seu confronto com os soldados israelenses, incitando manifestações e protestos globais.

De fato, Mezine inaugura Fanon na geração do século XXI que, talvez, nunca conheceram o colonialismo propriamente dito, mas tem herdado todas as suas duráveis brutalidades. Almada de Portugal insiste que “ativistas, rappers e acadêmicos devem ler Fanon, mas não o transformar em algo da moda. Fanon é para a libertação.” Em outro lugar, as palavras hipnotizantes de Cornel West para a câmera permanecem conosco: “Muitos do mundo pré-fanoniano persiste. Mas nós vamos conversar com Frantz Fanon porque muitos de nós decidimos que queremos ser fiéis até a morte as verdades ditas por eles, aos seus testemunhos…”

Como o esforço melancólico de Yazid Fentazi´s oud, que nos acompanhou por todo o documentário, agora deixa aos músicos Neyssatou da Tunísia que bravamente imersos por “War” de Bob Marley, há um senso de júbilo. A missão talvez ainda não esteja complete, mas a saga foi iniciada e o trabalho da decolonização libertária está encampada seriamente por todo o planeta.

Por Bhakti Shringarpure em Africa Is a Country.
Gentilmente traduzido por Ste.


Participe do financiamento coletivo do livro “Zumbi dos Palmares: por uma educação antirracista”, de Walter Vadala

Em “Zumbi dos Palmares: por uma educação antirracista“, Walter Vadala articula as possibilidades de encontros e diálogos que emergem a partir da história de Zumbi para que educadoras e educadores possam compreender e combater o racismo utilizando-se da educação como mediadora e fazendo da escola mais que um ambiente de conhecimento teórico, mas um ambiente de transformação social.

A Monstro dos Mares tem entre seus princípios a tarefa de disponibilizar exemplares impressos a bibliotecas comunitárias, coletivos, movimentos e centros sociais que, entre suas práticas, promovem uma educação libertária, antirracista e que questionam o padrão eurocêntrico dentro e fora das salas de aula. A função de nosso bonde editorial é fazer do livro uma ferramenta de luta contra o capitalismo, a colonialidade e o patriarcado em todas as suas expressões. Para a publicação de “Zumbi dos Palmares: por uma educação antirracista“, vamos fortalecer as seguintes coletividades:

  • Biblioteca comunitária de Parelheiros (São Paulo – SP)
  • Biblioteca Comunitária Livro Livre Curió (Fortaleza – CE)
  • Biblioteca Libertária Maxwell Ferreira (Belém – PA)
  • CIEJA Campo Limpo (São Paulo – SP)
  • Quilombo das Artes (Porto Alegre – RS)
  • Frente Quilombola RS (Porto Alegre – RS)
  • Anarquistas contra o Racismo
  • Coletivo Cultura Viva (São Paulo – SP)
  • Rádio Comunitária A Voz do Morro (Porto Alegre – RS)
  • Rádio Comunitária Aconchego (Recife – PE)
  • CCS Vila Dalva (São Paulo – SP)

Para que muitos exemplares possam chegar nesses espaços precisamos da sua participação. Ao apoiar com valores a partir de 10 reais ou recomendar a campanha de financiamento coletivo do livro para suas amizades, você estará fortalecendo a distribuição de materiais que vão fortalecer efetivamente a luta cotidiana de quem faz educação.

“Zumbi dos Palmares: por uma educação antirracista” – para apoiar o projeto acesse: catarse.me/zumbidospalmares

O processo de publicação de um livro exige a participação de muitas pessoas. Para colocar as ideias para circular, Vadala contou com a colaboração de Monica Marques, que fez a diagramação e criou as belas e poderosas ilustrações que compõem o livro. Também estão neste projeto o carinho e atenção de Luciana Teixeira Morais, que fez a revisão, e os generosos conhecimentos do bibliotecário e ativista Paulo R. Freitas, que contribuiu com a ficha catalográfica e aspectos formais de registro do material. Aqui na Monstro, nosso compa Da Vinci ajuda nas rotinas de mídias sociais, Baderna James como assistente editorial (e impressão) e abobrinha como editora geral do projeto (e montagem). Com a sua participação, vamos debelar os limites físicos e sociais dos muros que cercam as universidades e formam verdadeiros abismos entre comunidade e conhecimento.

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